A mais famosa lancha do Brasil está à venda

Por: Otto Aquino -
23/06/2017
Após anos de muitas alegrias ao lado de Gilda, o empresário Gerard Souza decidiu encontrar um novo dono para a querida embarcação (Foto Otto Aquino)

Se a beleza da atriz Rita Hayworth no filme Gilda, de 1946, ainda impressiona, imagine quando o filme foi lançado. O mesmo pode-se dizer, hoje, da lancha Gilda, esta linda 48 pés inteiramente de madeira. Conhecida como o barco do presidente Juscelino Kubitschek, recebeu esse nome porque era tão bonita quanto a personagem do cinema. Mas o tempo passou, Gilda foi abandonada e, por muitos anos, ficou apodrecendo às margens do lago Paranoá, em Brasília. Restou apenas o esqueleto do casco. E muitas boas lembranças. Faltou pouco para a mais famosa lancha de Brasília não sucumbir ao tempo. Até que, quase uma década atrás, o empresário carioca Gerard Souza resolveu resgatá-la e financiar uma longa restauração. Após uma epopeia náutica, ele trouxe-a de volta às águas, bonita como sempre foi, 55 anos depois de chegar ao lago pela primeira vez. Agora, após anos de alegrias ao lado de Gilda, Gerard está em busca de um novo dono para a mais famosa lancha do Brasil. “Sinto que a Gilda está com saudade de navegar no mar. Chegou o momento de dar uma nova alegria a ela”, explica o empresário, que decidiu colocar a relíquia à venda.

Por pouco a mais famosa lancha de Brasília não sucumbiu ao tempo. Até que, uma década atrás, o empresário carioca Gerard Souza resolveu resgatá-la e financiar uma longa restauração (Foto Otto Aquino)

Nunca houve uma lancha como Gilda. Trazida por Juscelino Kubitschek à capital federal recém-inaugurada, na década de 1960, Gilda, primeira embarcação de grande porte a singrar o lago Paranoá, serviu a quatro presidentes até quase apodrecer totalmente. Feita em madeira de lei, com peso aproximado de 25 toneladas, 14,20 m de comprimento, 4,40 m de boca e dois motores diesel GM Detroit, de dois tempos, 6 cilindros e 166 hp cada, com tecnologia da década de 1930, a lancha foi batizada, a pedido de Juscelino, em homenagem à diva Rita Hayworth, eternizada no clássico do cinema Gilda. Assim como sua musa inspiradora, a Gilda do Paranoá arrancou suspiros por onde navegou. Mas não resistiu ao abandono e submergiu. Teve de ser resgatada do fundo do lago, aos pedaços, com seu casco repleto de fendas, interior desfigurado e motores faltando peças. O quase fim de Gilda comoveu Gerard Souza, conhecido empresário do ramo náutico, dono de uma marina e duas lojas em Brasília. “Ver um barco que é parte da história da República apodrecer seria uma dor eterna”, confessa Gerard, fã de Juscelino.

Apesar de estar ligada à Juscelino, que a mandou levar do Rio para Brasília para usá-la no Paranoá, Gilda foi encomendada pelo presidente Getúlio Vargas ao projetista alemão Joachim Küsters (Foto Otto Aquino)

Após uma década de restauro — período em que teve de ser praticamente reconstruída por um carpinteiro trazido do Rio por Gerard especialmente para realizar a reforma —, Gilda voltou a exibir o tom vivo de madeira. Apesar de estar ligada à história de Juscelino, que a mandou levar do Rio para Brasília para usá-la no Paranoá, o que, de fato, ele fez muitas vezes, Gilda foi encomendada pelo presidente Getúlio Vargas ao projetista alemão Joachim Küsters (criador de cascos que fizeram a fama do estaleiro Carbrasmar). Durante quatro anos, Joachim frequentou o Arsenal da Marinha diariamente para construí-la, juntamente com uma outra lancha encomendada por Getúlio, a Garça. Por muitos anos, as lanchas gêmeas navegaram na Baía de Guanabara como embarcações de autoridades. Após a transferência da então capital do Brasil para o Centro-Oeste do país, Gilda teve o mesmo destino, com ordem de Juscelino, amante de agradáveis passeios náuticos. Já a irmã Garça continuou desfilando no Rio, mas também caiu no esquecimento e ficou abandonada em um depósito da Marinha, até que um incêndio a destruiu por completo.

Ninguém desfrutou mais de Gilda que Juscelino, o nosso presidente bossa-nova, anfitrião de memoráveis festas na espaçosa cabine (Foto Otto Aquino)

A mudança de Gilda para Brasília foi digna de um roteiro hollywoodiano. No Rio, um guindaste colocou a lancha em uma carreta, usada no transporte de carros de combate do Exército. Escoltado por um pelotão do Exército, o comboio cumpriu mais de 1 000 km de estradas até o Paranoá, lago artificial que ainda seria construído por Juscelino para aumentar a umidade do Planalto Central e oferecer uma alternativa de lazer aos moradores. “Uma verdadeira operação de guerra foi montada para levá-la até Brasília. Pontes foram reforçadas e até estradas refeitas”, conta Gerard. Ninguém desfrutou mais de Gilda que Juscelino, o nosso presidente bossa-nova, anfitrião de memoráveis festas na espaçosa cabine. No interior, há um único camarote na proa, servido por um banheiro, uma grande sala à meia-nau, com sofás e janelas, uma cozinha fechada atrás do salão e, por fim, uma praça de popa, usada para admirar o pôr-do-sol, assim como fizeram Vinicius de Moraes e Tom Jobim. “Juscelino usava a lancha sempre que queria impressionar alguém”, diz Gerard.

No Rio, um guindaste colocou a lancha em uma carreta, usada no transporte de carros de combate do Exército, que cumpriu mais de 1 000 km de estradas até o Paranoá (Reprodução)

Com a chegada de Jânio Quadros ao Palácio do Planalto, em 1961, Gilda ficou de lado. Pressionado pelas crises do seu governo, João Goulart, que presidiu o país até o fatídico ano de 1964, também passou bem longe do lago. Coube à primeira-dama Maria Thereza Goulart usar a lancha. Ela fez um passeio ao lado da primeira-dama da então Iugoslávia, Jovanka, mulher do marechal Tito. “Demos uma volta inteira no lago durante um coquetel, algo muito elegante para a época. Foi um encontro muito agradável”, disse, na época, Maria Thereza. Já os militares foram conquistados. Consolidado o Golpe de 1964, que pôs fim ao regime democrático em vigor desde o fim do Estado Novo, o presidente Castello Branco redescobriu a embarcação deteriorada, fruto da falta de manutenção e abrigo. A diva ficava atracada ao relento, exposta ao sol forte e às precipitações da temporada de chuvas. O chefe da nação ordenou o restauro da lancha, com a qual passava horas com os netos. Ao deixar o Palácio da Alvorada para a chegada de Costa e Silva, em 1967, Castello tratou de se despedir pessoalmente da companheira. Em 1970, o general Emílio Garrastazu Médici foi o último presidente a navegar em Gilda, repassada à federação de iatismo de Brasília. Usada como barco de apoio em regatas do iate clube, aos poucos ela acabou esquecida. Com a chegada de barcos mais modernos e com melhor desempenho, ela perdeu o encanto e foi tomada pela água.

A reconstrução exigiu a dedicação de mais de 20 profissionais, além de pesquisas e viagens (Foto Otto Aquino)

Gerard conheceu Gilda fora d’água. Ganhou de presente de um amigo. Investidor, um dos proprietários do Rio Quente Resorts, Francisco Hyczy da Costa contratou um guindaste, retirou Gilda do lago e a levou por rodovia para Goiânia. Chegou a iniciar o trabalho, repassado ao amigo Gerard. A reconstrução exigiu a dedicação de mais de 20 profissionais, além de pesquisas e viagens. O benfeitor de Gilda foi aos Estados Unidos atrás de peças para os motores Detroit, modelo acostumado a movimentar tanques de guerra. Experientes mecânicos conseguiram fazer roncar outra vez duas relíquias de cerca de 900 kg cada — três vezes o peso de um motores similar usado nos barcos atualmente. “Alguns fornecedores de motores dos Estados Unidos mandaram peças de presente, só por saber que estávamos restaurando duas máquinas daquela época”, lembra Gerard, que recolocou Gilda na água há pouco mais de dois anos. “Se, hoje, a imagem de uma lancha de 50 pés navegando no Paranoá surpreende, imagine nos anos 1950?”, compara.

A primeira-dama da então Iugoslávia, Jovanka, mulher do marechal Tito, durante passeio a bordo da Gilda no Lago Paranoá (Reprodução)

A madeira do casco, especialmente acima da linha d’água, teve de ser toda substituída e as estruturas internas refeitas a partir de relatos, já que não havia fotos antigas e a família de Juscelino fazia questão de que Gilda caísse no esquecimento, por conta das festas de seu famoso dono. Pronta, Gilda tem uma sala dotada de armários, uma sala principal com três sofás, além da cabine de comando e uma suíte, na proa. Tudo no tom forte da própria madeira, contrastado pelo azul das almofadas e dos colchões e o branco das cortinas. “Gilda emergiu tão sedutora quanto antes. A musa do lago continua arrancando suspiro por onde navega”, emociona-se Gerard, que, há dois anos, também conversou com a equipe da TV Náutica e gravou a entrevista abaixo.

Ficha técnica
Ano: 1936
Capacidade: 25 pessoas
Comprimento: 46 pés (14,20 metros)
Motorização: Dois motores GM Detroit de 136 hp cada
Combustível: Diesel
Preço: R$ 700 mil
Para saber mais: Villa Náutica (www.villanautica.com.br) ou telefone 61/99243-3368

Conheça mais detalhes da lancha de madeira de lei Gilda, um dos cartões-postais do Lago Paranoá, em Brasília, e que pode ser visitada na marina Villa Náutica.

 

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